“Trabalho não é emprego Emprego não é trabalho Trabalho constrói o mundo Emprego traz o salário” (Dudu Pererê, poeta) | Imagine a situação: Você reclama do mal atendimento e o garçom diz que não tem o que fazer pois não nasceu para esta profissão. Sua vocação, na verdade, é ser artista. Você aceitaria esta justificativa? |
Assim como o poeta coloca algo de si em seus versos e através deles cria um sentido, dar sentido ao trabalho também é um processo de criação. Embora a atividade do poeta possa parecer menos desgastante que a do garçom, a inspiração é apenas 10% do poema. O resto é transpiração. Toda criação dá trabalho e todo trabalhador é criador. Quem disse que não é possível servir mesas com poesia?
Mesmo que sejam repetitivas as tarefas inerentes a qualquer trabalho, frequentemente é possível encontrar soluções criativas para o peso da rotina. Nos sentimos bem quando conseguimos nos expressar através do trabalho e colocar um pouco de nós mesmos no mundo. Sofremos quando nos sentimos inúteis, quando não somos capazes de imprimir nossa marca na atividade profissional. Por exemplo, o excesso de burocracias e procedimentos ao qual deve se submeter um operador de telemarketing dificilmente lhe dá espaço para, de fato, resolver o problema da pessoa que precisa. Isso é muito frustrante e gera adoecimento.
Roman Krznaric, escritor do livro “Como encontrar o trabalho da sua vida. A pandemia de insatisfação nas empresas” afirma:
“Um estudo em vários países europeus demonstrou que 60% dos trabalhadores escolheriam uma carreira diferente se tivessem a opção de começar de novo”, aponta.
“Nos Estados Unidos, a satisfação no trabalho está em seu menor nível – 45% – desde que essas estatísticas começaram a ser compiladas duas décadas atrás.” (retirado da Revista TPM do mês de Abril)
Diante de estatísticas como esta, há quem imagine que só uma vida de ócio pode ser realmente saudável. Porém, as pessoas ociosas caem rapidamente no tédio e na sensação de falta de sentido, o que termina por gerar ainda mais adoecimento. Como afirma o Dr. Deepak Chopra no livro “Conexão Saúde”:
“Seu corpo sofre a mesma atrofia que a natureza reserva aos seres que se tornam inúteis. O que é inútil morre logo. A natureza, inclusive a natureza interior do ser humano, não tem lugar para inutilidade. Ela só promove a saúde daquilo que contribui para o crescimento e o progresso.”
O emprego não é o trabalho. Podem até haver empregos relativamente inúteis, mas o trabalho tem uma função psicológica e social. “A função psicológica do trabalho” é o título do livro do psicólogo francês Yves Clot, segundo o qual a atividade humana é fonte de uma espontaneidade indestrutível. Muitas vezes o desgaste do trabalhador não ocorre devido a um excesso de carga de trabalho, mas sim devido ao esforço de ter que impedir a própria iniciativa. Trata-se de possibilidades não vividas, “daquilo que não se pode fazer no âmbito do que se faz.” , afirma Clot. Pode parecer paradoxal, mas nessa ótica, é muito cansativo estar num emprego em que se tem pouca coisa para fazer.
A perspectiva reichiana também vê uma função no trabalho, que se assemelha à “Função do Orgasmo”, importante livro do autor. Segundo Wilhelm Reich, um dos resultados da terapia é o despertar do interesse pelo trabalho, em sintonia com a emergência da potencia orgástica. Ou seja, à medida que o paciente descobre a satisfação na vida sexual ele também renova a excitação com o trabalho. Mas também há casos em que a pessoa se dá conta de que seu emprego é excessivamente mecânico e desinteressante, de modo que a única solução seria buscar outra atividade profissional.
De fato, o relacionamento laboral pode ter muitas semelhança com o amoroso. Há situações em que evitamos dar o máximo de nós mesmos pois tememos sermos explorados pelo outro (chefe ou cônjuge). Demonstrar muito interesse e mostrar serviço pode ser perigoso, sempre pode ter alguém “querendo se dar bem” em cima da nossa boa vontade. Deste modo, muita gente acaba ficando na retranca, com medo de se engajar tanto no amor como no trabalho.
O sentido no trabalho é socialmente compartilhado. Muitas vezes, é preciso negociar, mudar regras e procedimentos, lutar por direitos trabalhistas e etc., para que seja possível fazer do trabalho uma função vital. Neste embate, é preciso buscar parceiros que estejam dispostos a transformar a situação e não culpados que justifiquem a nossa própria imobilidade. Há quem queira justificar um trabalho mal feito com base em questões pessoais, culpando os colegas de trabalho, o chefe… No entanto, devemos exigir de nós enquanto profissionais o mesmo que exigimos de qualquer garçom em um restaurante.
Será que precisamos passar a vida trabalhando e amando sem plenitude, medindo a intensidade de nosso empenho, em razão do medo de frustração ou de não termos as expectativas correspondidas? Este tipo de contabilidade, típica do sistema capitalista no qual estamos inseridos, apenas nos limita e empobrece. Serviço não é sinônimo de submissão, assim como entregar-se no amor também não é. Pelo contrário, é preciso dar valor ao trabalho em si mesmo, para além do preço que possam lhe estipular. Para tal, é necessário estarmos seguros do poder criador na nossa atividade, o que não é possível fazermos se tentamos nos poupar do esforço. Uma vez conscientes deste valor, podemos escolher onde melhor empregar nossa força criativa laboral.
Alice Paiva
Mestre em psicologia, terapeuta reichiana e poeta.