Pressupostos da técnica reichiana
A clínica reichiana consiste em uma visão integrada da pessoa em suas dimensões histórico-social, orgânica e energética. Dentro dessa ótica, os gestos do paciente, sua postura, seus maneirismos habituais, suas perturbações somáticas e seu comportamento no meio social, são indiferenciados de suas manifestações psíquicas, uma vez que são todos modos de uma mesma organização energética. Estas esferas, enquanto totalidade, são entendidas como expressão de seu caráter, o que portanto são fundamentais para o exercício da análise. |
Quanto mais estereotipadas e enrijecidas tais expressões, mais se evidenciam as couraças ou blindagens no sistema vital do indivíduo, que podem ser entendidas como o resultado de um processo histórico de dessensibilização devido a prejuízos no contato entre o organismo e o seu ambiente. Desde os primeiros movimentos que o ser vivo realiza desde que é concebido, é possível assumir que todo o esforço que faz para estabelecer relações, passa pela necessidade de mediação destas relações, o que implica a necessidade de criação de mecanismos de defesa como recurso à sua sobrevivência. Tal compreensão é particularmente importante, sobretudo quando se considera estágios de desenvolvimento muito iniciais, onde o ser ainda não possui recursos para transformar o meio em que vive. Sua única alternativa então, passa a ser sua própria transformação para subsistir a determinados estresses. A história que engendrou tais mecanismos de defesa é analisada no processo terapêutico, com o objetivo de promover a flexibilização das couraças (das defesas inscritas no organismo), possibilitando a emergência de sentimentos e sensações contra as quais a pessoa se defendeu.
O setting terapêutico constitui um ambiente protegido, no qual, a partir da relação de confiança com o terapeuta, o paciente desenvolve a capacidade de experimentar e gerenciar seus afetos. Nesse processo, o cerne da dificuldade dos contatos afetivos é encarado, os medos que estão gravados na organização do corpo e na organização afetiva. Busca-se desfazer a fantasia (oriunda do medo) de que a expressão afetiva pode vir controlar todas as ações do sujeito em detrimento da razão. Pelo contrário, o que a clínica busca promover é uma nova racionalidade que dialoga com a dimensão afetiva em uma relação cooperação mútua. O resultado disso é a possibilidade de experienciar uma maior profundidade emocional, onde a capacidade de vivenciar sentimentos como o amor e a felicidade são potencializados, uma vez que também se amplia o contato com sentimentos negativos como a raiva e a tristeza. A direção é o aumento da sensibilidade, que permite estabelecer uma nova aproximação sensível e contatada frente os acontecimentos da vida, o que permite o desenvolvimento de estratégias coerentes e vitais em relação a estes mesmos acontecimentos. |
A Somatopsicodinâmica
Reich estabeleceu sete níveis de organização funcional do corpo, onde se dão diferentes registros de relações com o mundo envolvendo simultaneamente níveis corporais, fases evolutivas do desenvolvimento, expressões fisiológicas, emocionais e relacionais. São nestes níveis que podem ser reconhecidos os padrões funcionais de encouraçamento do organismo humano: os olhos (e os telerreceptores), a boca, o pescoço e o alto do tórax, o diafragma, o abdomen e a pélvis. |
A partir desta organização é possível dar um novo significado às doenças crônicas cuja explicação pela medicina tradicional é inexistente ou bastante falha. Federico Navarro com base nestes níveis desenvolveu a Somatopsicodinâmica, que é um alternativa a Psicossomática, diferindo da mesma por romper definitivamente com o paradigma cartesiano. Em uma perspectiva psicossomática, o psiquismo torna-se o responsável pelas manifestações e distúrbios somáticos. Tal forma de pensar não é possível a partir de Reich, uma vez que cada manifestação do ser vivo é a expressão de um funcionamento energético. Parte-se do pressuposto de que a mesma relação energética que produz o corpo, produz ao mesmo tempo o psiquismo, sendo o contrário verdadeiro. A partir desta concepção há uma mudança de visão, no que diz respeito a como se compreende os fenômenos que acontecem no corpo, na mente e no âmbito social. A Somatopsicodinâmica toma este princípio e busca compreender como se dão as relações vitais e patológicas do ser humano. Neste sentido, a saúde é entendida como a expressão da livre movimentação da energia e a doença, como a estagnação das correntes energéticas. Por essa razão, a metodologia da Vegetoterapia desenvolvida por Navarro implica em actings, exercícios de mobilização neuromuscular, cujo objetivo é o gradual desbloqueio das couraças do corpo e o restabelecimento do fluxo energético no organismo. |
Evolução metodológica e clínica da Vegetoterapia Carátero-Analítica A Vegetoterapia Carátero-Analítica, técnica terapêutica desenvolvida por Reich, foi formulada dentro dos princípios econômico-energéticos em compreensão com os desenvolvimentos biológicos e fisiológicos de sua época, sobretudo em relação à neurologia. No entanto, tais campos de estudo apresentaram um desenvolvimento crescente, assim como as teorias sistêmicas e da complexidade que despontavam na passagem do século XIX para o século XX. Ola Raknes, em seu livro Wilhelm Reich e a Orgonomia, demonstra a entrada de Reich na complexidade, ao afirmar a energia orgônica (energia vital) é negativamente entrópica e que esta entropia negativa se contrapõe à entropia mecânica, sendo essencial para a criação e manutenção da vida. Com isto, abre-se a necessidade de se pensar a metodologia clínica da Vegetoterapia Carátero-Analítica a partir dos avanços e das teorias contemporâneas de pesquisadores como Ilya Prigogine, Isabelle Stengers, Humberto Maturana, Francisco Varela, Fritjof Capra, Lynn Margulis, Henri Atlan, Eric Kandel, dentre outros, que têm investigado o desenvolvimento da vida neste sentido. Este é o trabalho que foi desenvolvido por Federico Navarro e tem sido prosseguido pelo psiquiatra italiano Genovino Ferri. É importante destacar a necessidade de trazer Reich historicamente nestes avanços, por inteiro, afirmando seus pressupostos e sua matriz metodológica, conservando os desenvolvimentos científicos que se fizeram válidos e reposicionando outros que caíram por terra desde sua época. A clínica pós-reichiana busca ampliar e aprofundar tal pensamento, em compromisso com os paradigmas estabelecidos por Reich, como a Análise do Caráter, a Vegetoterapia, a Orgonomia e a inseparabilidade entre a clínica e a política. Diagnóstico e Prognóstico Navarro, a partir da neurologia e buscando suprir uma demanda dirigida por Reich a Ola Raknes, busca compreender a metodologia clínica de Reich a partir de uma perspectiva ontogenética, ou seja, a partir do desenvolvimento do organismo vivo desde o ovo fertilizado até sua forma adulta. Navarro compreende que é preciso distinguir três períodos fundamentais do desenvolvimento humano: sua vida embrionária, sua vida fetal e sua vida pós-natal. A caracteriologia pós-reichiana se baseia na compreensão das situações de estresse ou de risco vital que atingem o organismo humano nestes períodos. A partir dos mecanismos desenvolvidos pelo ser vivo em resposta aos estresses, é possível inferir sobre cotas ou gradientes de nutrição energética que o ser tem à sua disposição e que são determinantes para a formação de tecidos, interações hormonais, equilíbrios vegetativos, etc. Ao mesmo tempo, dada a inseparabilidade entre os processos mentais e biológicos, é possível inferir sobre a sustentabilidade da vida psíquica nos estresses históricos e atuais e, desta forma, a constituição de psicopatologias e a disposições para sua ocorrência. Esta compreensão energética tornou-se fundamental para Navarro, sobretudo em relação à conduta ética e cautelosa do terapeuta na clínica. Enquanto diretor do hospital judiciário de Nápoles, Navarro trabalhou com psicopatologias graves e por isto afirmou a necessidade de um diagnóstico e prognóstico claro na clínica, o que não ocorria nas técnicas terapêuticas corporais que circulavam na contra-cultura. Tomando Reich como bandeira, diversas intervenções psicoterapêuticas corporais tinham o intuito de “desbloquear as couraças” e dada a incompreensão das premissas energéticas, não era raro que tais intervenções sobre o corpo levassem à abertura de quadros de surto e o aparecimento de psicopatologias. Para Navarro, os processos constitutivos do corpo devem ser compreendidos adequadamente, bem como as intervenções relacionais-energéticas que se dão no setting e o terapeuta deve ter um entendimento claro de tais processos a fim de que possa estabelecer uma conduta responsável com seu paciente. Teoria da Complexidade e psicopatologia Ferri, seguindo as bases estabelecidas por Navarro, busca compreender o desenvolvimento das relações do setting e das relações da pessoa com o mundo a partir de uma ótica energético-sistêmica do caráter. Para tanto, a fim de criar um sistema negentrópico (de entropia negativa) vital na clínica, Ferri afirma a necessidade de uma co-evolução entre analista e analisando, devendo a relação estabelecida aportar um quantum vital para ambos. Para tanto, é importante que o terapeuta seja capaz de realizar deslocamentos em sua própria caracterialidade (seus modos de ser e relacionar) e de estabelecer aberturas entre seu próprio corpo e sistema sensorial e o sistema do analisando. Ferri toma o conceito da física da “flecha do tempo” a fim de compreender como se dá a evolução do sistema vivo, tanto historicamente e em suas marcas caracteriais, como atuais, ou seja, quais são as bases de intervenção atual que podem levar ao aumento da negentropia do sistema. Da mesma forma, tomando a percepção vanguardista de Reich sobre os processos energéticos, afirma a necessidade de se instituir questionamentos complexos sobre os manuais de psicopatologia, uma vez que, ainda que sejam importantes métodos de comunicação entre a medicina, a psiquiatria e a psicologia, têm uma perspectiva descritiva baseada apenas em sintomas e, portanto, são bidimensionais. O tempo, afirma, seria fundamental para a compreensão de psicopatologias que se dão em escalas ou andares, sendo possível distinguir diferentes expressões em diferentes planos temporais, tornando necessário a inserção de uma tridimensionalidade nas intervenções terapêuticas. Por que defendemos o rigor metodológico sobretudo no que tange o uso dos exercícios energéticos e corporais? Nos anos 70 e 80, criou-se no Brasil uma divisão entre terapias corporais e terapias cognitivas, de modo geral. Era comum se afirmar “faço uma terapia corporal”, “faço uma terapia vivencial”. Por um lado, isso se colocava como alternativa a uma forma de clínica que lidava mais com uma análise das representações mentais, como a psicanálise. Por outro, isso também abriu margem a um problema, que foi o surgimento de várias formas de terapia totalmente intuitivas com arcabouços teóricos muito mesclados e sem uma metodologia clara. O rigor metodológico de Federico Navarro, juntamente com o de outras pessoas, foi retirar essa separabilidade entre uma formação teórica e uma terapia corporal ou energética. É comum até hoje recebermos pedidos de interessados que dizem que “querem fazer sua própria clínica, da Gestalt, da Psicanálise, de Winnicott, etc., mas querem agregar os exercícios corporais e energéticos de Reich e do Navarro”. É contra essa forma de pensamento dissociado que Navarro escreveu seus livros, ampliando os parâmetros clínicos de Reich, demonstrando que não se trata apenas de “agregar exercícios corporais e energéticos” a uma terapia verbal e a outras técnicas. Esse é um pensamento que acaba sendo mecanicista de alguma forma e certamente faz com que um terapeuta não saiba se orientar em um processo terapêutico reichiano e lidar com muitas variáveis clínicas ao mesmo tempo: fisiológicas, psicológicas, caracteriais, políticas, relacionais, transferências e contra-transferências corporais e de traços caracteriais, densidade energética da cobertura, da fixação, dentre outras. Aprender os actings reichianos e pós-reichianos e implementá-los mecanicamente em outros arcabouços técnicos e parâmetros sensíveis é algo irresponsável, pois pode não exibir resultados terapêuticos ou desencadear processos que o próprio terapeuta pode não saber lidar, por não ter vivenciado em sua própria Terapia Pessoal de Base ou nas suas Supervisões Clínicas, com o rigor metodológico devido. Saber olhar o paciente como um todo, não se trata nem só de um discurso, por mais bem formatado que esteja e nem só de saber aplicar exercícios corporais e energéticos. A clínica reichiana se preocupa com um conjunto de funcionalidades na vida da pessoa, que conduzem a clínica. Em que áreas ou expressões da vida dela ela não está funcionando? Se ficamos apegados a uma forma clínica que se preocupa muito com o acolhimento, ou muito com a parte cognitiva e mental, ou muito com os significados simbólicos do inconsciente, ou muito com a fisiologia mecânica, etc., podemos deixar de ver aspectos importantes de funcionamento da unidade funcional e de resultados que a pessoa tem na sua vida prática. É sobre a funcionalidade que atuamos e ela se faz em diversos níveis ao mesmo tempo. |