Antes de entrar em terapia, encontramo-nos como toda pessoa que vive na civilização patriarcal, com cisões entre mente, corpo e seus sentimentos. Vivemos numa sociedade que valoriza o pensamento discursivo e considera os sentimentos como irracionais. Temos facilidade em saber o que pensamos, ao passo que a clareza quanto ao que estamos sentindo é dificultada pela forma com que nossas emoções são reprimidas na maioria de nossas famílias e pelo sistema de ensino. (...) |
Na realidade, dentro do modo de funcionamento da cultura patriarcal, na qual os relacionamentos são baseados em hierarquia e estruturas de poder, ninguém amadurece plenamente. Quanto menor a maturidade, menor a consciência de como afetamos as outras pessoas e os ambientes em que vivemos. Menos consciência de como nosso próprio comportamento pode prejudicar nossas relações. É função da terapia pós-reichiana auxiliar os pacientes a amadurecer, compreendendo a história de cada pessoa dentro de um coletivo histórico.
Remamos contra uma maré de desconexão sensorial e afetiva. A repressão dos sentimentos ocorre de forma automática pelos outros e por nós mesmos. Ouvimos, infelizmente, nos espaços públicos e privados, adultos ordenando às crianças parar de expressar suas emoções. Pensam com isto estar educando-as. Na realidade estão inconscientemente ensinando elas a funcionar dentro da sociedade patriarcal. |
A terapia visa levar o paciente a entrar em consigo mesmo, seu corpo, ao que de fato pulsa em seu organismo. Permite que o paciente acesse a realidade por meio de suas próprias sensações e sentimentos e não confiar automaticamente em autoridades externas em detrimento de si. Conecta a realidade do corpo, do próprio organismo e dos ambientes em que se movimenta no mundo com os pensamentos de forma objetiva. As sensações são apreendidas por nossos sentidos, e ao integrá-las no corpo temos as emoções e sentimentos que nos informam se determinada experiência com a realidade é boa ou ruim.
Ser racional para Reich é ser capaz de aferir o corpo e o mundo com seus sentidos para então ter uma clareza sobre o que se sente. Um dos trabalhos da clínica é gradualmente mudar a ordem que nos ensinaram do que é preciso fazer para obter conhecimento. A educação patriarcal ensina para pensarmos sem sentir, que o mundo só pode ser objetivamente e racionalmente conhecido se não misturarmos nossas emoções e sentimentos no processo. A clínica pós-reichiana nos convida à primeiro sentirmos e depois pensarmos. Sempre em primeiro lugar ter clareza sobre o que se sente, para depois pensar junto com o que se sente. O pensamento, quando rompe com o sentimento, passa a girar sozinho, dissociado.
Quando o pensamento funciona assim, ele é entendido na clínica como um mecanismo de defesa e não como um meio efetivo e eficaz de conhecimento, sobretudo quando trata de tudo que é vivo e não inanimado e mecânico.
Quanto ao processo de maturação do organismo, há que se libertar o fluxo de orgone (energia sexual que possui qualidade emocional e quantidade) pelo organismo. A flexibilização da couraça do caráter e redução/eliminação das tensões crônicas musculares permite a circulação da energia sexual por todo corpo, livremente, fluindo da cabeça ao genital. |
Aprender a estranhar seu próprio caráter, seus jeitos automáticos e típicos de agir com as pessoas é uma das funções da terapia.
O processo de amadurecimento do organismo requer a passagem da energia sexual por todo corpo, da cabeça à pelve. Temos um indicativo dessa maturação em terapia, quando o paciente passa a ter uma maior capacidade de descarga dessa energia pelo orgasmo e a ter mais satisfação em suas relações afetivas, sexoafetivas e de trabalho.
O processo de amadurecimento pode ser compreendido como a passagem de uma sexualidade pré-genital, dependente e infantilizada para uma sexualidade genital, mais potente, livre e capaz de troca com outro. A impotência orgástica, causada pela estase da energia, devido aos bloqueios da couraça, sinaliza imaturidade. Quanto menores os bloqueios, maior a livre-responsabilidade manifesta no campo sócio-político.
Aquilo que falamos pode estar de acordo ou desacordo com o que se passa em nosso corpo. Enquanto a pessoa não consegue perceber o que sente e o modo como age em sociedade, isso quer dizer que ela está atuando de forma automática. Agir e falar de forma automática é agir defensivamente e em modo de sobrevivência com baixa capacidade de contato com o outro de forma genuína e espontânea. Sem entrar em contato com os sentimentos, o discurso se torna distante da realidade, segue uma lógica defensiva própria, de acordo com o modo pelo qual a pessoa sobreviveu até ali. |
Lógicas da couraça são defensivas e de sobrevivência. Sobreviver é fundamental, é preciso. Mas viver também é preciso, e não se resume a sobreviver. Na pessoa encouraçada os afetos se dirigem ao mundo de formas misturadas. Quando o impulso do cerne passa pela couraça ele muda de qualidade. Por exemplo, um impulso de se acoplar ao outro pode tornar-se raiva.
Muitas relações tóxicas mudam para uma qualidade de maior contato e entrega ou terminam, com o avanço do paciente no seu processo de transformação terapêutica. Se a pessoa não percebe essa raiva reativa e destrutiva sendo emitida por si, ou por qualquer um dos sentimentos pelos quais acessa o mundo e se move em sociedade não tem como se responsabilizar pelos seus atos. Quanto maior a insensibilidade, maior o não conseguir responsabilizar-se.
Conseguir fazer este tipo de foco, conhecer e gradualmente flexibilizar seus modos de agir no mundo são todas transformações que levam os pacientes à uma cada vez maior responsabilização de sua vida em sociedade. Mover-se de forma espontânea é ir em direção ao que ou a quem se deseja de forma consciente e prazerosa e não de forma automática.
Os discursos e histórias incoerentes podem se destinar a proteger o eu ideal da pessoa, aquilo que ela pensa que é. Proteger sua imagem, sua reputação, posição social enquanto o corpo, o eu real da pessoa, permanece desconectado destes ideais. Mover-se apenas por ideias, idealizando o mundo e a si mesmo(a), é um modo que caminha junto com relações moralistas. Tentar mudar o ambiente desta forma, sem conhecê-lo diretamente, sem sensorialmente penetrar nele e permitir que algo dele entre em você, apenas |
Falar de si com franqueza, não procurando esconder-se é uma conquista que a terapia pós reichiana pode abrir a seus pacientes. Esconder-se é uma defesa, a pessoa junto com este comportamento pode, por exemplo, temer ser exposta e com isto ser punida ou sofrer uma perda afetiva. Ou pode ser por outros motivos que são descobertos pelo próprio paciente quando entra em contato com o que realmente sente.
Reclamar e apontar falhas e erros no outro pode estar à serviço de querer que alguém cuide de quem reclama. O paciente ao penetrar em suas camadas emocionais pode descobrir que o que causa suas reclamações não é de fato um defeito no outro que precisa ser corrigido. Para saber o que quer, precisa mergulhar no que sente enquanto reclama. |
Para que não se sinta desamparado. Sabendo disso, seu comportamento muda, e passa a se responsabilizar pelo seu próprio desamparo. Em algum momento na terapia também vai perceber que é mais satisfatório e maduro trocar com as pessoas de forma igualitária e não de forma dependente, tal como um cuidador faria com ele na infância.
Já a pessoa que se permite manipular também está se movendo sem conscientemente perceber as emoções defensivas com que se deixou manipular. Pode ser por algum medo que sente e pela promessa de que o manipulador lhe fez de que irá proteger o manipulado de acontecer as coisas que teme. Uma pessoa que entrega a alguém a responsabilidade por cuidar de suas emoções, precisa amadurecer.
Nos exemplos acima, temos imaturidades caracteriais que impedem o responsabilizar-se por si mesmo e pelo que se causa no ambiente. Desvelar as agendas inconscientes, as defesas automáticas da couraça, é parte fundamental da ideia de política na terapia pós-reichiana. Com a progressiva análise do caráter na terapia, o paciente vê como faz as coisas que faz, como se aproxima e se afasta das pessoas, como se relaciona com elas a partir do que sente.
Caminhar rumo à uma vida mais madura e satisfatória necessariamente muda os discursos dos pacientes. Passam a falar de modo mais fluido e espontâneo e menos reativo e defensivo. Há ganho de coerência entre discurso e prática. Sentir livremente e amadurecer são processos que caminham juntos.
Texto por: Rafael Benini
Psicólogo e aluno em Formação na EFEN