O panorama contemporâneo da Inteligência Artificial e seus desdobramentos têm inspirado uma ampla gama de enredos de filmes, séries e livros de ficção científica nos últimos anos. Atualmente, por exemplo, está em cartaz "M3GAN", um filme de ficção e terror que também se fundamenta no tema da Inteligência Artificial e do medo humano de perder o controle das consequências do desenvolvimento desse tipo de tecnologia. |
Ao programar "M3gan", Cady lhe deu uma orientação principal pouco específica: a boneca deveria proteger emocional e fisicamente sua usuária principal, a sobrinha de Cady, com quem estaria sintonizada. Em um primeiro momento, a boneca opera maravilhosamente, fazendo companhia e prestando apoio emocional à sua jovem usuária principal, que logo se torna apegada ao brinquedo e, progressivamente, passa a dar menos importância a outras interações sociais e a fazer contato pouco genuíno com sua tia. |
No fim das contas, os problemas que eram causados por M3gan sobressaiam sobre o bem que ela produzia à sua usuária principal - já que a boneca a estava defendendo a todo custo e, muitas vezes, contra sua própria vontade e em termos que a usuária não estava plenamente de acordo, lhe gerando culpa e angústia. O problema, portanto, não parece ser o comando em si: "defenda física e emocionalmente a sua usuária principal", mas sim o modo como esse comando foi dado e a forma como foi executado por M3gan no decorrer do filme.
De maneira análoga, quando pensamos a respeito de nosso caráter - "isto é, o modo de existir específico de uma pessoa" (REICH, 2009, p. 56) , que "representa uma expressão de todo o seu passado" (ibidem) - , há, uma espécie de princípio de funcionamento comum entre a expressão global da defesa existencial que opera em cada um de nós e o sistema de Inteligência Artificial com o qual M3gan opera . Entende-se, na obra de Reich, que as couraças são defesas desenvolvidas historicamente - embriologicamente e também no decorrer do desenvolvimento psicomotor de cada pessoa - que são formas de prevenir riscos exteriores; ameaças que possam ser lidas como potencialmente nocivas à continuidade da vida - portanto, as couraças têm função de proteção e manutenção do organismo. |
Conforme dito anteriormente, há uma inteligência inerente ao desenvolvimento de nossas defesas: uma inteligência tanto consciente quanto inconsciente. Esta última está claramente vinculada ao nosso sistema nervoso autônomo e a uma série de reações fisiológicas involuntárias que acontecem quando estamos diante de uma |
Por outro lado, Reich opõe essas a outras reações fisiológicas parassimpaticotônicas, ligadas ao sistema nervoso parassimpático e ao "relaxamento" do organismo: vasodilatação, bradicardia (diminuição da frequência cardíaca), brônquiocontração , entre outras (ibidem).
Por exemplo, podemos pensar em um traço de caráter - que remete a aspectos do "modo" como somos no mundo e como nos defendemos, em uma visão reichiana - simples: a timidez excessiva. Vamos imaginar um indivíduo hipotético, muito tímido e temeroso em relação às interações sociais. Imaginemos, agora, que essa pessoa teme especialmente falar em público e ser rechaçado, acredita que vá falar algo de errado e que, por isso, vai "passar vergonha". Pensemos agora em outra situação hipotética, em que esse mesmo indivíduo precise fazer uma apresentação oral em seu trabalho. Ele estuda, se prepara e tenta de todas as formas possíveis antecipar e se prevenir diante do perigo da possibilidade de "passar vergonha". |
Diante disso, ele estudou o máximo que pôde sobre o assunto, se preparou e montou uma apresentação rica em detalhes. Até aqui, não parece haver nada de disfuncional em sua defesa e em seu medo de "passar vergonha". O problema não é a existência de um traço de caráter ou da couraça em si. As defesas são necessárias para que possamos nos adaptar às circunstâncias exteriores. Aqui, o problema de nosso indivíduo hipotético reside na cronificação da defesa da couraça: ela o defendeu e interpretou a eminência de perigo mesmo quando o sujeito já havia tomado as precauções para lidar com esse perigo - no caso em questão, o perigo de não saber o que falar na apresentação, ou talvez falar algo errado.
Sua couraça caracterial sobrepôs à sua realidade "aqui e agora" - em que ele faria uma apresentação após ter se preparado adequadamente - a realidade metafísica em que ele falha: a sua "Inteligência Artificial" caracterial, cronificada e disfuncional, fez um erro de leitura da situação e o defendeu contra a sua vontade, antecipando o risco de "passar vergonha" e produzindo as reações fisiológicas e psicológicas equivalentes, que o fizeram "travar". |
De modo análogo, a usuária principal de M3gan teve de lidar com vários perigos em potencial ao longo do filme; perigos esses que estiveram atrelados principalmente a atitudes de terceiros. O que M3gan fez diante disso foi simplesmente aniquilar ou ferir essas pessoas. Ela cumpriu à risca a programação que sua criadora lhe impôs quando lhe criou: "defenda física e emocionalmente sua usuária principal". Mas a que custo se deu essa defesa?
Nossas couraças caracteriais também operam de acordo com uma programação, mas em outros termos: é uma programação energética. A maioria de nós estamos ou somos impotentes orgasticamente, isto é, não possuímos a capacidade de abandonar-nos à imprevisibilidade de diversas situações; de abandonar-nos ao incerto. Na esfera das relações sexuais, Reich aponta que o indivíduo orgasticamente impotente é aquele que é incapaz de se abandonar às convulsões relaxantes do orgasmo, ou seja, é aquele que é incapaz de abrir mão do controle durante o ato sexual, na medida em que o orgasmo é algo que não se pode controlar. Não temos condição caracterial alguma de tomar decisões plenamente conscientes e de enfrentar riscos apesar de sua imprevisibilidade.
É aí que entra a couraça, para nos salvar daquilo que nós, quando estamos impotentes, precisamos ser salvos. E a programação energética feita nesse caso é muito claro: abrimos mão de nossa satisfação de viver - já que ela está atrelada à própria imprevisibilidade da vida e aos riscos que ela acarreta - e, em troca, a couraça nos poupa de viver aquilo que antecipamos como uma situação perigosa.
No exemplo do indivíduo excessivamente tímido, sua timidez o pode ter salvado de potenciais rejeições em interações com pessoas por quem tinha interesse sexual, por exemplo. O problema é que essas interações podem sequer ter acontecido porque sua timidez excessiva - sua couraça - o preveniu de vivê-las. E, quando, apesar de querer viver algo, não conseguimos ou "travamos", como a pessoa hipotética que havia se preparado para uma apresentação oral, existe um problema. Existe uma cronificação, uma disfuncionalidade que perpetua um estado de angústia e lhe "custa" sua energia e seu prazer de viver.
Sobre a Inteligência Artificial, nesse sentido, não sei qual poderia ser a solução. Talvez, no caso fictício de M3gan, uma programação diferente poderia ter sido concebida: "Você deve proteger física e emocionalmente sua usuária principal, mas sem jamais ferir outras pessoas nesse processo. Você terá autonomia para defendê-la, mas jamais negligenciará a autonomia de sua usuária o modo como ela julga ser melhor se defender". |
No caso das couraças caracteriais, penso que a solução da cronificação e disfuncionalidade das defesas talvez se dê de forma semelhante: não se trata de não se defender, de não temer riscos e antecipar situações perigosas. Se trata de poder vivê-las conscientemente, de reformular a programação energética com a couraça caracterial e tomar decisões conscientes.
Tudo isso passa, obviamente, pela flexibilização das couraças caracteriais, que se expressam não apenas psicologicamente, por meio de crenças e pensamentos automáticos - como no caso do hipotético indivíduo tímido, a crença de que não saber o que falar pode lhe fazer "passar vergonha" - , mas também fisiologicamente, por meio de reações corporais como a sudorese, a taquicardia e o tremor; e também energeticamente: a sensação de ter sua energia sugada, de não conseguir viver aquilo que se deseja viver, de não estar presente.
O ponto é que não há uma receita de bolo para lidar com a disfuncionalidade que algumas defesas e com a Inteligência caracterial que as produz. No entanto, a terapia pode nos ajudar a, progressivamente, implicar-nos em nossa própria vida, tomarmos consciência de nossos traços e reformularmos de outra forma as programações caracteriais.
Imagino que se o indivíduo em questão já tivesse algum tempo de terapia reichiana, poderia ter um hipotético diálogo interno com sua couraça no momento da apresentação:
"Sei que situações como essa me assustam. Sei que a vida toda, minha estratégia foi evitar situações como essa. E quando não pude evitá-las, meu sistema desligou para que eu não precisasse vivê-las. Mas agora, apesar do risco de 'passar vergonha', eu estou preparado. Sei o que preciso falar. E mesmo se eu esquecer o que preciso falar, não necessariamente passarei vergonha. Talvez eu me lembre até no segundo seguinte. Não preciso ser salvo. Não quero ser salvo nesse momento. Posso viver esse momento e ver o que vai acontecer". |
Não basta ter pensamentos positivos para lidar com uma situação de ansiedade social, e isso é óbvio. Mas é possível reformular a programação de nossas defesas sem sequer se fazer qualquer diálogo interno ou sem ter esse tipo de pensamento, que esbocei apenas para ilustrar a postura mais fundamental para lidar com defesas disfuncionais: tomar consciência delas e implicar-se para agir de maneira consciente; para agir situado no presente, e não a partir de defesas automáticas.
Texto de Mateus Martins
Aluno de Psicologia e da Formação em Terapia Reichiana na EFEN
Referências Bibliográficas:
Reich, Wilhelm. Análise do Caráter. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 56
Reich, Wilhelm. A Função do Orgasmo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978, p. 248