

O povo unido… é o nosso desafio.
Há uma experiência estética em ver as pessoas lutando pelos seus direitos. Quase todo mundo concorda: “É bonito ver o povo reunido”. Mas o que é o povo da passeata? Tem militante de extrema esquerda pregando que “é preciso radicalizar”; tem estudante de classe média gritando “sem violência”, tem policial infiltrado com o objetivo de puxar uma briga para desmobilizar o movimento, gente que aproveita o anonimato da multidão para dar vasão ao próprio sadismo, gente que já sofreu violência da polícia e vê na passeata uma oportunidade de fazer justiça, têm os próprios policiais que estão ali “cumprindo com o seu dever”, “evitando o caos” e “protegendo a população”, e etc… Agora imaginem estes personagens diante do psicólogo na sessão de terapia. Não é difícil pensar que cada um deles tem seus motivos. E todos são povo.
A teoria reichiana ajuda a compreender este funcionamento de extremos. Segundo Reich, as forças de rebelião do ser humano estão ligadas ao amadurecimento da sexualidade. A saída da dependência infantil marca o despertar sexual e também a percepção de que há muito mais opções do que a de obedecer. O jovem se dá conta de que os pais nem sempre estão certos, portanto é preciso fazer escolhas que questionem a autoridade. Não é à toa que o movimento da contracultura em maio de 68 está associado a uma revolução sexual. Assim como bichos castrados não desenvolvem a agressividade, permanecendo infantis e dóceis, o animal humano reprimido sexualmente também fica submisso. Além disso, é mais facilmente capturado pelo consumismo e pela passividade. Mesmo na sociedade contemporânea, onde aparentemente há liberdade sexual, existe uma intensa forma disfarçada de repressão sexual. Desse modo, o campo sexual na sociedade capitalista foi esvaziado de sua potência política, tornando-se mais um objeto de consumo. As relações amorosas frequentemente são banalizadas, romantizadas e relegadas à esfera do privado, como se não tivessem nada a ver com as outras áreas da vida.

Não há revolução sem tesão
A repressão da expressão afetiva da criança e do questionamento do adolescente, por exemplo, vão gerando imobilidade. Esta se manifesta na rigidez corporal e psicológica, que é produto de um processo chamado por Reich de encouraçamento. Levada a se identificar como sujeito de consumo, por exemplo, – que precisa ganhar a vida para ter as coisas que deseja (amigos, família, emprego) – a pessoa vai se afastando de suas necessidades vitais, que são fontes de vida. Segundo Reich, aquele que está em contato com suas necessidades ama nas situações de amor, odeia quando o ódio é legítimo, e teme de forma clara quando o medo é racional. Há em sua reação afetiva uma coerência com o meio. Porém, o encouraçamento dificulta que a pessoa perceba sua capacidade de ir em direção àquilo que lhe é necessário. Deste modo, ela vai ficando menos ativa e menos agressiva; agressividade no sentido utilizado por Reich, de aproximação e não destrutividade.
Com isso, criamos um prisioneiro dentro de nós, um lado sombrio, cheio de ódio e destrutividade. Este prisioneiro, normalmente, está muito bem escondido sob a máscara do “pacato cidadão reclamão”. Este é capaz de aguentar calado a violência de Estado em inflação, desorganização, falta de saúde, educação e etc. Ou então, reclama sem fazer quase nada, considerando a política algo muito distante. Para suportar abdicar daquilo que é necessário para si, o cidadão aceita as compensações do consumo, e acaba enredado em um círculo vicioso que contribui com a manutenção do status quo social.
Porém, em um momento de fortes transformações sociais, é como se o muro da couraça rachasse, deixando vir a tona a raiva e os anseios reprimidos. Alguns, mais adoecidos, perdem o controle e manifestam esta agressividade de forma sádica. Para Reich, este tipo de ação exagerada e não coerente com a realidade tem sempre em sua raiz a frustração de uma necessidade vital e sexual; sexual em um sentido político, que envolve relação, contato afetivo entre seres humanos, muito diferente das relações onde o outro se torna objeto.
Rebelar-se é preciso
Transformações radicais na estrutura social são necessárias, porém a história já mostrou, como no caso da União Soviética, que o fascismo pode ser praticado em nome de ideais revolucionários de esquerda. Este é o tema do livro de Reich “A psicologia de Massas do Fascismo”, no qual ele afirma que não basta mudar a estrutura social, é preciso que haja, concomitantemente, transformação na estrutura de caráter das pessoas. Ou seja, uma mudança na consciência, que abarca a dimensão micropolítica, que diz respeito às nossas relações com as pessoas no dia a dia. Como disse Caró Lago “Não adianta votar no Freixo e não cumprimentar o porteiro”.
Dentre os múltiplos personagens de uma passeata provavelmente há algum que gostaríamos de eliminar, assim como há aspectos de nossa personalidade que queremos negar veementemente. Porém, é preciso ser capaz de observar aquilo que nos conecta à figura que mais rechaçamos. Não como um sinal de complacência, mas de consciência. Para não correr o risco de agir como opressor ou cair na passividade, faz-se necessário estar atento às couraças que impedem o contato com as necessidades vitais do ser. Na sociedade em que vivemos, a potência vital sempre está, necessariamente, carregada de inconformidade, de modo que a pessoa consciente faz de sua vida uma forma de resistência permanente. Então, entende-se que através do trabalho, da criação artística e intelectual, das relações pessoais, da participação em movimento sociais, etc., é possível cultivar a combatividade micropolítica, vivenciando cotidianamente a satisfação das transformações sociais oriundas das manifestações.
Revisão: Isa Kaplan Vieira, estudante de psicologia (UFRJ) do curso de formação terapeutas na EFEN.
Agradecimentos a Rudi Reali, Rodrigo Gondim, Vinicius Zepeda, Lucia Helena Ramos, Francisco Nogueira, Caró Lago, Clara Maria Fernandes, e outros cujos comentários me ajudaram muito a pensar esta questão.
Alice Paiva Souto
Mestre e psicologia, professora e terapeuta na EFEN (Escola Pós-Reichiana Federico Navarro) e manifestante.