O bordão caiu em desuso, mas não é raro alguém se defender de uma crítica argumentando “esse é o meu jeito”. É como um ponto final, como se nada pudesse ser feito a respeito dado que a pessoa “nasceu assim”, “cresceu assim”, “vai ser sempre assim” – o que Alice Souto, professora da EFEN, chama zombeteiramente de Síndrome de Gabriela. Mas nosso jeito é realmente inato?
Cabe aqui pontuar que esse jeito – que alguns referem-se como personalidade, características ou afins – no ‘dicionário pós-reichiano’ se chama caracterialidade. Em grandes linhas, caracterialidade é o que é característico em nós, o que se repete em nosso comportamento, na forma como nos expressamos e nos relacionamos com o mundo. É o nosso como. Tá, e de onde vem a caracterialidade afinal?
Muito superficialmente, a formação de um traço de caráter ocorre assim: aconteceu algo (uma ou várias vezes ao longo do tempo) que a criança percebeu como um perigo intenso. Uma reação de defesa inconsciente ocorre. E, então, o organismo dela “grava” os sinais desse perigo e a reação que permitiu que ela sobrevivesse a ele. Surge, assim, um mecanismo protetivo: sempre que o organismo detecta esses sinais, a pessoa reage inconscientemente dessa mesma forma, desse mesmo jeito.
A caracterialidade é, portanto, um complexo mecanismo de defesa. Sua função é “proteger o indivíduo contra experiências desagradáveis”: dores, emoções, sentimentos, situações. Cada um desses traços “é uma parte da história da vida do indivíduo, conservada e, de outra forma, ativa no presente” e, assim, a caracterialidade é a soma de todas essas “experiências passadas” (Reich, 1995, p.125).
Prosseguimos reagindo das mesmas formas pela vida afora. Então, enquanto adultos, seguimos vivendo de acordo com nosso mecanismo de defesa criado na infância, quando ainda não tínhamos outros recursos para nos defender. Normalizamos nossa caracterialidade e não a percebemos como “algo alheio” a nós (Reich, 1995, p. 125).
A terapia reichiana nos incita ao estranhamento de nossos traços, ao estranhamento da forma como somos e nos relacionamos. Criar consciência sobre nossa própria caracterialidade, sobre o ‘como nos defendemos o tempo todo’ é seu ponto de partida.
O entendimento de traços de caráter como neuroses ou sintomas é um pouco assustadora, eu sei. Dói enxergar as próprias defesas e como elas afetam as nossas relações.
Essa perspectiva tem sido muito significativa para mim. Olhar com estranhamento para nossa caracterialidade nos conduz a desnormalizar a forma como nos relacionamos com o mundo. Nossos traços são defesas construídas a partir das nossas experiências e não quem somos. E compreender isso é libertador.
Referências
Reich, Wilhelm. A Função do Orgasmo. São Paulo: Brasiliense, 1995.
Reich, Wilhelm. Análise do Caráter. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Autora: Fernanda Chagas Borelli, aluna da formação avançada da EFEN..