O motorista parou no trânsito antes do ponto de ônibus e deixou os passageiros para adiantar o itinerário. Ele, que já aguardava no ponto há muito tempo, fez sinal e esperou que a condução chegasse até a sua frente para a parada obrigatória. Mas o veículo não parou e seguiu seu rumo até ser interrompido pelo sinal. O rapaz, no ímpeto, disparou em direção ao ônibus, na certeza de que agora ele não poderia sair impune: encarou, exclamou, gesticulou por dois prolongados minutos, mas o motorista não abriu a porta. O sangue em sua face e a agitação pelo corpo lhe deu uma calorosa sensação de prazer. Os olhares alheios lhe trouxeram vergonha e culpa. Era tarde demais.
Wilhelm Reich foi o primeiro, na época em que era psicanalista, a chamar a atenção para os pacientes muito polidos, comedidos e educados. Muitas vezes, estes parecem ser casos fáceis, pois demonstram compreender e concordar com tudo que o terapeuta diz. No entanto, estas pessoas dificilmente apresentam alguma melhora com o processo terapêutico. São capazes de fazer terapia durante anos e seguir, sem questionar seus efeitos, com a mesma insatisfação no trabalho, no sexo, falta de interesse pela vida etc… Essas pessoas, aparentemente bem resolvidas – que não batem boca com o motorista, não falam alto e jamais rebolariam até o chão –, são, também, as que “ficam remoendo pequenos problemas querendo sempre aquilo que não tem”, como diria Cazuza. Se alguém lhes perguntar se são felizes, provavelmente, dirão que não, mas, já que ninguém é, então, está tudo bem. Ou vão dizer que a causa de sua infelicidade é a falta de alguma coisa que pode ser encontrada no futuro (como o dinheiro, por exemplo) ou, talvez, alguma mágoa do passado (questões da infância, problemas com os pais, amores mal resolvidos) o que acaba sendo o principal assunto de uma terapia que nunca evolui.
Com base em sua vasta experiência clínica, Reich percebeu que a rígida submissão a uma boa educação, no que se refere à moral, funciona como mecanismo de defesa contra sentimentos como a raiva, que fica reprimida, causando diversas doenças. Em alguns casos a pessoa chega até a sentir raiva, porém, sente também medo de se descontrolar, perder a cabeça, pois a sua “boa educação” não lhe permitiu aprender a lidar com esse tipo de sentimento. Desse modo, acredita estar fazendo um grande bem em “deixar pra lá”. Mesmo sendo incapaz de lidar com a própria raiva, o sujeito se crê superior àqueles que se expõem demonstrando este sentimento diretamente. E pode chegar ao ponto de reprimir tanto a raiva que deixa até de senti-la. Exceto por um probleminha de gastrite crônica, pressão alta, ou uma crise de enxaqueca de vez em quando… Estas pessoas são muito bem sucedidas em manter tudo como está. E, como creem piamente que as coisas não mudam, sempre terão motivos para fofocar e se lamentar.
De fato, a sociedade freqüentemente nos leva a pensar que aqueles que não expressam raiva ou outros sentimentos “negativos” são, de algum modo, superiores. Se você é muito tranquilo, provavelmente, tem vocação para ser psicólogo, professor ou doutor – é o que dizemos. Imagine só encontrar seu psiquiatra batendo boca com a caixa do banco devido ao tempo de espera na fila? Um escândalo! – é assim que pensamos. Mas desde quando questionar as autoridades para defender seus direitos é falta de educação?
De fato, a boa educação moral e normativa é uma força de conservação que age sempre no sentido de evitar conflitos e/ou transformações e manter o status quo. Mas, será que faz sentido admirar uma pessoa por sempre conseguir aparentar tranquilidade apesar das injustiças e das contradições que vivemos? Ou será que essa atitude blasé não é um mecanismo de defesa que nos afasta do outro e da realidade em prol da manutenção de um equilíbrio precário e doentio?
Reich defende fortemente a alegria e o prazer como funções vitais. Mas, para ser alegre e poder dizer sim, é preciso também saber dizer não. Só é capaz de dizer sim quem sabe dizer não. Claro que sair por aí reclamando de tudo, expressando a raiva e o descontentamento o tempo inteiro, vai nos tornar pessoas amargas e insuportáveis. Entretanto, a expressão da raiva e da inconformidade em algumas situações, desde que estejam em coerência com a realidade, são fundamentais para que possamos, também, ser tranquilos. Esconder-se atrás de uma máscara de superioridade (“não vale a pena discutir com essa pessoa”), ficar esperando a felicidade no futuro ou ficar se ressentido de coisas do passado só serve para nos distanciar da vida e das pessoas que estão no presente.
É só observar o estado das coisas para perceber que, de vez em quando, é preciso mobilizar algum nível de agressividade, como um sentimento ativo e não destrutivo, para mudar as coisas. Embora eu deseje estar sempre tranquila, tem uma certa “paz” que eu não quero. Até Jesus Cristo fez um barraco lá naquela passagem do templo porque estavam fazendo feira no lugar sagrado! Se a gente ficar deixando pra lá toda vez que o ônibus não pára, com o tempo já não teremos nem mais energia para correr atrás dele. E não é divina a sensação de pegar o ônibus a tempo, depois de dar aquela corrida?
Alice Paiva
Doutora em Psicologia e Terapeuta Reichiana pela EFEN – Escola Pós-Reichiana Federico Navarro