É claro que a maioria de nós sabe que o terapeuta também é um indivíduo que está no mundo e tem uma vida para além de seu trabalho. No entanto, mesmo sabendo disso, é difícil se relacionar com a imagem do terapeuta enquanto um ser que vive processos de alegria e angústia, regeneração, tristeza, como alguém que também viveu traumas e precisou, ou ainda precisa, se curar. É por isso que na terapia reichiana o primeiro mito que buscamos quebrar é o do imaginário. |
Gostaria de convidar-lhes a pensar sobre a figura da terapeuta (no feminino, já que é uma mulher que lhes escreve) e sobre o processo de formação de uma profissional capaz de administrar a técnica reichiana durante o processo terapêutico. Na EFEN (e na vida) a terapeuta passa por um intenso processo de formação teórica e prática para aprender as técnicas da terapia reichiana. Ela/e aprenderá sobre as características do cerne biológico e as interações biofísicas que acontecem no organismo vivo, a funcionalidade das camadas corporais e também as disfuncionalidades que surgem ao longo da vida e auxiliam no desenvolvimento de uma couraça de caráter. Mas tão importante quanto o que acontece dentro de sala de aula é o que acontece no processo terapêutico desta profissional em formação. Também somos pessoas encouraçadas e é dentro do processo terapêutico que poderemos vivenciar o que aprendemos, investigar em nós as couraças que estão trabalhando continuamente para a nossa defesa sem que necessariamente tenhamos consciência do processo.
Um pouco de conceito analítico
Couraças caracteriais são as estruturas que nos impedem de entrar em contato com a realidade da maneira como ela se apresenta e tiram a nossa capacidade de sentir e reconhecer as diferentes misérias emocionais do mundo. Elas são formadas a partir de um trauma infantil que vai se fortalecendo, seja pelo ambiente em que o indivíduo cresce ou por uma doença física que aparece ao longo da vida do paciente. Para que o indivíduo não viva este trauma novamente, as couraças assumem a função de construir uma defesa subjetiva e biofísica contra traumas futuros. |
Uma vez iniciada a terapia, é esperado que as couraças sejam flexibilizadas, liberando a passagem para a energia e aumentando a sensibilidade do paciente em relação às suas emoções e acontecimentos ao seu redor. No entanto, durante esse processo de identificar e dissolver as resistências, há um certo desequilíbrio energético, pois sua função é justamente “resistir e proteger o organismo a qualquer custo”. Então pode surgir alguma instabilidade emocional e até um aparente fortalecimento das resistências, que se voltam contra a terapeuta, estabelecendo uma relação de transferência que pode ser positiva ou negativa, e será papel da profissional sustentar esta relação e se manter firme diante do panorama. Reich vai propor uma estratégia para lidar com estes momentos, chamado guerra de guerrilha, que se baseia em estabelecer morada na primeira resistência identificada e partir dela para lidar com as resistências secundárias que irão aparecer durante o processo. Assim, a terapia seguirá um curso relativamente normal e efetivo.
Sobre o vínculo paciente-terapeuta
Para pacientes que desejam tornar-se terapeutas a análise do caráter será um momento fundamental. A posição da terapeuta na clínica reichiana é a de entrar em contato a partir de um olhar, escuta e sensorialidade atentos para identificar como o paciente fala, como seu corpo se mexe enquanto fala, qual é a emoção que emerge quando a narrativa é trazida. Não é uma análise simbólica como na psicanálise, mas uma análise da conexão do paciente consigo mesmo. |
Em quais momentos o paciente começa a se relacionar com o mundo a partir da couraça? Como funciona este relacionamento? Ele reage com agressividade ou submissão? O paciente sabe identificar suas emoções e reconhecer o momento em que elas tomam conta da situação? A terapia dá início a uma busca em conjunto com o paciente por esse como, ou seja, qual resistência é ativada no momento em que ele deixa de se relacionar com a realidade que se apresenta em sua frente e de que forma passa a reagir de maneira reativa por conta de um gatilho disparado inconscientemente, um enganchamento negativo trazido pelos traumas que formaram sistemas de conhecimento pré-concebidos sobre a vida.
Para conseguir construir um vínculo com o paciente, trabalhar as questões que devem ser colocadas em foco e, junto a isto, sustentar a relação de transferência, a terapeuta precisa passar por um processo de fortalecimento de si e flexibilização de suas resistências. Se, enquanto terapeutas, não soubermos identificar as nossas próprias emoções, ou se estamos nos comportando de maneira reativa em uma situação, de que forma será possível auxiliar o paciente na compreensão de suas próprias resistências? Conseguiremos sustentar uma transferência negativa vinda do paciente? A dificuldade da terapeuta em relação ao próprio caráter vai dificultar a formação de um vínculo de confiança genuíno do paciente com o processo terapêutico.
forte, não-ambivalente e erótico, que possa fornecer
uma base para uma relação intensa com o analista e
suportar as tempestade provocadas pela análise
(Reich, 2003, p.126)”
Então, do que é feito uma terapeuta? É claro que não somos objetos de cena que ganham vida apenas no setting terapêutico, voltando para o armário ao seu encerramento. Somos pessoas, temos dias difíceis, traumas que precisam ser trabalhados, questões de caráter alheios que nos afetam intimamente. Isso significa que é possível que enganchemos nas questões de nossos pacientes, nos identificando positivamente ou negativamente com elas. |
Autora: Camila Crespo, aluna da formação avançada da EFEN..