É comum uma pessoa procurar terapia quando percebe algo de contraditório na sua vida. Não consegue mais dar conta de ao menos uma coisa que lhe seja vital. Talvez seja a relação com o parceiro, com o trabalho, consigo. Pode sentir que não dá mais conta de tocar a vida e se queixa de sintomas como insônia, ansiedade, incapacidade de conseguir trabalhar, compulsões; que não passam. |
O corpo percebe seu próprio peso, equilíbrio, dores, incômodos, carícias, tensionamentos, vigor, etc., valendo-se de seus sentidos interoceptivos. E percebe seu ambiente, por seus sentidos exteroceptivos: visão, audição, paladar, olfato e tato. Mas por sermos um organismo vivo, também temos uma capacidade peculiar de sermos impressionados pelo movimento vivo de outros organismos, sejam humanos ou não. No processo de contato com outros organismos, nossa percepção não é afetada usando apenas nossos órgãos dos sentidos. Também nos servimos das impressões e sensações causadas pelos movimentos expressivos das pessoas.
Todas as expressões corporais, faciais e de movimentos que as outras pessoas emitem, nós as recebemos em nossos corpos como impressões. O sistema nervoso está no corpo todo, recebendo e emitindo sinais por todos os órgãos. Portanto essas impressões afetam nosso corpo inteiro. Percebemos elas por meio do que W. Reich chamou de “sensações de órgãos”. |
Entretanto, possuímos tensões crônicas em nosso corpo que dificultam a percepção do que vem das sensações de órgão. Elas formam uma barreira interna que dificulta nosso contato com o outro e que anestesia nossa capacidade de sentir. Nossa cultura possui um caráter patriarcal e autoritário, que convida à anestesia do que sentimos. Anestesia que vai sendo formada por meio de estresses contínuos em ambientes ameaçadores (o primeiro deles, a família compulsória) e pela repressão de nossa sexualidade.
Reprime-se não apenas o livre sentir, mas também nossos movimentos corporais e nossas emoções. Um exemplo de repressão parental decorre da dificuldade e ignorância de como se educar uma criança. Ao se tentar ensinar a ela sobre limites e impactos sociais de seu comportamento, opta-se por uma educação baseada no medo e na repressão, conectadas à uma obediência cega à autoridade dos pais ou cuidadores. |
Mais funcional seria investir no vínculo afetivo com a criança, respeitar seus sentimentos e sensações para ajudá-la na construção de seu conhecimento e no desenvolvimento de si mesma. É importante reconhecer os obstáculos sociais no desenvolvimento da expressão afetiva e dos movimentos espontâneos da criança.
A repressão sexual e emocional deixa marcas em nosso corpo. Particularmente no sistema nervoso vegetativo e nos músculos estriados esqueléticos, fáscias e tendões. Tornam-se sinais gravados que ficam registrados nestas partes do corpo. Estes sinais gravados acionam continuamente nosso sistema nervoso autônomo, e atuam em nosso jeito de viver e nosso comportamento social. Reich compreendeu que as tensões crônicas constituem a couraça muscular, que compreende grupamentos funcionais dos músculos, da fáscia e dos tendões. Na couraça ficam retidas e congeladas as emoções que não pudemos viver e expressar historicamente, ao mesmo tempo em que ela tenta nos manter insensíveis em relação ao que sentimos com o intuito de nos proteger dessas emoções dolorosas retidas em nosso corpo e que não foram curadas. A couraça também gera disfunções na tonicidade muscular, levando a hipertonias e hipotonias funcionais musculares crônicas.
A leitura do ambiente pode partir basicamente de dois estados do corpo. Em um deles o corpo está bem contatado com seu meio, sente-se seguro e tem capacidade de sentir as pessoas de forma mais objetiva. Faz contato com o que de fato está acontecendo. A verdadeira objetividade, para W. Reich, só é possível quando os sentimentos e sensações estão em estado de fluxo e participam ativamente do processo de conhecimento da realidade. |
Outro modo de fazer a leitura do ambiente é usando a couraça crônica. Isso se dá de modo inconsciente. Misturam-se as informações que nos chegam em tempo real com os sinais que estão gravados na couraça. A percepção final fica truncada, embaralhada. A percepção objetiva fica misturada com emoções presas na couraça. Há uma interpretação automática. O que a couraça sente poderia ser expresso por palavras em algo meio assim: “o que já deu ruim comigo no passado, parece que vai dar ruim de novo, bem agora”. Assim, um evento pode ser lido de modo ameaçador, ainda que não o seja na realidade. A couraça acaba atuando na resposta aos eventos ambientais que ela lê como sendo ameaçadores e o comportamento deixa de ser fluido e espontâneo para ser algo programado, rígido, controlado.
Por exemplo, pessoas que têm medo de falar em público. Se isso acontece em qualquer situação, ainda que este público seja constituído das pessoas mais compreensivas e acolhedoras da face da terra, sabemos que a pessoa está naquele instante lendo e comparando a exposição de falar em público com os sinais gravados em sua própria couraça. Isso ocorre de modo inconsciente. W. Reich afirma no livro Análise do Caráter “...uma experiência infantil só tem um “efeito a partir do passado” se estiver ancorada numa couraça rígida que continua agindo no presente”. Há uma emoção congelada na couraça e que faz o evento ser antecipado como sendo algo difícil ou intolerável de se expor. Daí vem um comportamento de esquiva a estar em uma situação de exposição.
A terapia pós-reichiana leva o paciente aos poucos, sempre respeitando o ritmo do processo de cada um, a entrar em contato com as emoções presas, que estão na base do comportamento neurótico (neste caso, a esquiva) para que a pessoa possa sentir e se deixar atravessar por elas. A emoção presa na couraça atravessa o corpo, quando o organismo da pessoa se sentir maduro e protegido o suficiente para isso. |
A clínica é um ambiente seguro, sustentada pelo vínculo paciente-terapeuta. “É uma regra importante, ao se dissolver uma couraça, avançar lentamente, passo a passo, e só penetrar as profundezas biofísicas quando se sabe, exatamente, o que está acontecendo, e quando o paciente se habituou à situação a que já chegou. “(Reich, 1995).
O modo rígido e sem satisfação quando executamos nossas atividades de modo rígido e tenso pode ser mais cansativo que uma atividade em si mesma. O ambiente em que se pratica a atividade pode ser estressor e acionar a couraça que possui um componente neuro-endócrino. Nosso sistema nervoso possui uma capacidade neuroceptiva, descrita pelo neurologista Stephen Porges. Antes mesmo de efetuarmos uma percepção, primeiro nosso corpo percebe se o ambiente é ou não seguro. Isto é a neurocepção. E sempre que ele é reconhecido como inseguro, isso aciona as defesas de nossa couraça. No sistema nervoso isso aciona nossos modos de luta, fuga ou congelamento. O congelamento (paralisar, “fingir-se de morto”) ocorre quando o sistema nervoso autônomo conclui que há incapacidade de efetuar uma luta ou uma fuga naquele momento. Neste caso ele entra numa vagotonia paralisante. Um exemplo disso é quando alguém se aproxima para cometer um ato violento e simplesmente ficamos flácidos, sem acionamento de tônus muscular, parados, sem conseguirmos reagir. É como se nosso sistema voluntário desligasse, numa tentativa de não sentir o impacto do que vai acontecer.
Já na reação de luta e fuga, nosso sangue é inundado de adrenalina e cortisol, pois o sistema nervoso simpático é acionado e este aciona as glândulas que liberam esses hormônios. Pensamos e agimos de acordo com o que está acontecendo no nosso corpo nesse momento estressante e ameaçador, de forma tensa e defensiva. O corpo se contrai e se a pessoa estiver sensível o suficiente poderá sentir apertos nela. |
Uma sociedade que cobra, exige, demanda, ordena, controla, reprime, aperta, concorre para a manutenção de uma vida em modo de sobrevivência. Um modo de funcionamento que é feito por meio da armadura, da couraça. Nos apertamos e controlamos mutuamente. Foi assim que a maioria de nós aprendeu a viver, sob os ditames da autoridade e completamente alheios à autorregulação de nossos organismos. A autorregulação é a capacidade que o corpo tem de estar em relação com o seu ambiente e continuar vivo. Que respeita os movimentos que partem do próprio organismo. Se está calor, suamos, se está frio nossos pelos se eriçam. Quando uma função está autorregulada ela é atendida quando sentimos necessidade, por exemplo de dormir ou beber água. Da mesma forma, se sentimos que nosso meio é seguro, nos regulamos com ele de um modo em que podemos transitar e trocar com as pessoas de modo relaxado. Mas quando o sentimos como perigoso, não nos abrimos e agimos defensivamente. Neste caso, bloqueamos nossa espontaneidade, deixamos de nos expandir em direção ao mundo e de trocar satisfatoriamente com as pessoas.
Perdemos a autorregulação com o meio e com as pessoas em razão de medos profundos internos, que podem se manifestar ou não com pensamentos ansiosos do tipo: “O que vão pensar? Vão me retaliar? Serei punido? Morrerei? Não posso atender minha autorregulação, isso contraria a moral vigente. Meus pais vão me odiar. Minha esposa vai me criticar. Meu marido vai me trair.” E por aí vai. |
Todos procuramos momentos de sair da tensão, ou ao menos de a reduzir. Contudo, ela continua durante nossos momentos de lazer. Segue por exemplo nos engarrafamentos dos feriados, na pressa contínua em nossos passeios: não costumamos contemplar, relaxar, expirar completamente, alongar os músculos (nas academias o que se busca com mais frequência é tensionar), olhar e apenas olhar. O(a) leitor(a) pode observar se tem a mesma facilidade em viver de modo tranquilo com que tem de viver de modo tenso. Isso não é sua culpa, é o modo como aprendemos a persistir e sobreviver no mundo. O modo como aprendemos a continuarmos vivos apesar de todos os pesares. Talvez por isso, por estarmos habituados com o que está continuamente rígido no corpo, alguns pacientes acreditam que o funcionamento da própria sociedade não é tão disfuncional assim, que são eles que têm um problema e que precisam voltar a funcionar direito. Como se fossem apenas uma máquina que está quebrada e que precisa de concerto.
A chave para sairmos do automatismo do modo de sobrevivência, que é insatisfatório, é acessar o nosso corpo, por meio do sentir. Conhecermos nossas defesas que nos anestesiam. Conhecer como nossa couraça de defesa crônica funciona, passo a passo. Fazermos o caminho de volta à natureza que clama por liberdade e pulsação dentro de nós, mas que é continuamente constringida. |
A civilização afirma que a natureza é perigosa. Na realidade, o sofrimento social é nutrido desta visão equivocada da natureza e da vida. A fonte de energia das neuroses, dos conflitos psíquicos, da depressão, da ansiedade, é precisamente a energia sexual que fica presa no corpo com concorrência da tensão muscular, fruto da repressão sexual. A vida em si mesma é matéria orgânica vitalizada pela energia sexual que circula no interior de cada organismo. Cada organismo contata o ambiente por meio de uma membrana, a pele, no caso dos mamíferos e dos humanos. Somos muito mais que um ser material. Somos um ser bioenergético (matéria orgânica viva e energia). Energia sexual e vital são a mesma coisa. W. Reich a chamou de orgônio (por sua relação com organismo e orgasmo), depois de comprovar sua existência com seus assistentes por múltiplos experimentos, ao longo de anos em seu laboratório.
Não se deve reprimir nada nas crianças. Não existem impulsos primários vitais destrutivos no ser humano. Na vida, não há pulsão de morte inata. Isto é evidente observando o comportamento dos animais que vivem distantes do ser humano civilizado: não há guerra, sadismo ou masoquismo entre eles. Estes impulsos perversos nascem precisamente da repressão da vida, dos movimentos energéticos-emocionais em nosso corpo. A repressão dos impulsos primários de contato do organismo com seu meio gera impulsos secundários destrutivos. O masoquismo, o sadismo, o ódio à vida, o desejo de destruir, todas estas coisas só existem porque foram formadas por uma cultura autoritária. A cultura não precisa ser perversa nem autoritária, não precisa estar em desacordo com a natureza, nem reprimir ela. Uma boa cultura seria aquela que segue e vai a favor da natureza, jamais contra.
Existem múltiplas argumentações de que educar de modo sexualmente repressivo é garantir que as crianças não façam algo “errado”, mas isto além de ser falso, é adoecedor e forma as couraças crônicas. Os métodos de criar limites e aculturar os pequenos seres humanos são danosos à saúde emocional e física. Baseados no medo de punição ou em múltiplas punições bem reais. Pode se valer de acordos desonestos, ambivalentes, manipuladores, ou de outros tipos repressores com a desculpa de educar para saber respeitar (a autoridade do opressor, obviamente). Se observarmos o que acontece junto com o que sentimos, veremos a dor que uma criança sente ao ter de engolir uma emoção ou reprimir um gesto espontâneo. Se olharmos com cuidado, veremos ela se contraindo, encolhendo, num movimento que vai contra a natureza dela mesma e sua própria autorregulação. O ser humano anseia por satisfação, alegria de viver, orgasmo, carinho, pertencimento, amor. Nenhum destes conceitos necessita de uma explicação filosófica ou moralista. O que precisamos é poder viver eles, sem medo e sem punição.
Uma pergunta chave numa sessão de terapia pós-reichiana é: “Quais são seus sentimentos e sensações agora?” Ela é normalmente feita ao final de um acting, que são exercícios feitos de modo atento e intencional pelos pacientes, com o objetivo de mobilizar a energia sexual (vital) que está presa nos diversos anéis da couraça. Entrar em contato com o que sentimos é o caminho para abrirmos a couraça, sentirmos o que têm dentro dela, mas não com o pensamento sozinho. Um pensamento dissociado dos sentimentos e sensações é apenas uma especulação, uma hipótese. Compreendemos com nossa totalidade, com nosso organismo inteiro (que está sempre em relação com o meio social). Quando o paciente diz que não sabe o que sente é porque não está conseguindo fazer contato com seus sentimentos e sensações. Isto é muito comum para muitas pessoas. Durante um bom tempo na terapia elas não sabem e nem conseguem dizer o que sentem. É frequente que primeiro pensem para tentar sentir depois. Contudo, durante as sessões e no tempo entre elas, as sementes do que é trocado com o terapeuta na clínica vão germinando. Até que em um determinado momento, inesperadamente e sem controle algum disto, a pessoa nota o que está realmente sentindo antes de pensar. O que antes estava oculto de si mesma (inconsciente), agora começa a se tornar claro (consciente).
A ansiedade é um modo padronizado de funcionamento na acelerada civilização contemporânea. A energia sexual se torna agitada dentro das contenções da couraça, que a retém em seu interior, fazendo um papel de represa. A pessoa fica acelerada porque sua energia também está. Agitação é efeito da contenção que acontece em diferentes segmentos da couraça pelo corpo. Reich mapeou sete anéis de segmentos que correm de modo perpendicular à circulação da energia. Enquanto a energia desce pela frente do corpo e sobe pelas costas, num movimento circular e no sentido vertical em relação à coluna vertebral, a couraça funciona em anéis no sentido horizontal do corpo, retendo e prendendo parte da energia em seus diferentes segmentos musculares. A energia estagnada e sobreexcitada é a fonte de todas nossas neuroses e também da ansiedade.
Para não sentir, a pessoa inconscientemente mantém sua respiração para um nível superficial. Não consegue expirar completamente, e é fácil vermos quando alguém está muito ansioso “puxando” o ar, num movimento inspiratório exagerado. A ansiedade por si mesma é um medo antecipatório, medo de entrar em contato com as emoções bloqueadas na couraça, medo de fazer contato com o que se sente em tempo real, ou medo de fazer contato com outra pessoa, seja numa situação (falar em público) ou com uma pessoa que desperta alguma emoção intolerável (desejo, excitação, medo, raiva). A ansiedade caminha junto com a imaginação de algo na mente que é desagradável e que a pessoa quer evitar. Ou ainda de algo agradável, mas que a pessoa apesar de desejar, não consegue obter.
O modo de vida encouraçado crônico reduz a potência vital do organismo. Menos potência, menos sentir. Pouca potência tem a função de evitar sentimentos e sensações que a pessoa teme, mas com isso também se diminui ou se perde a capacidade de sentir prazer e alegria de viver. Perde-se a capacidade de total relaxamento e expansão. Sem isto, não há pulsação saudável no corpo. Por pulsação, basta observar nosso corpo (coração, pulmões, intestinos, o orgasmo que vem em ondas pulsatórias). A pulsação plasmática do organismo como um todo e de cada órgão é feita de expansão e contração em proporção harmônica. Ela ocorre com dificuldade no organismo humano cronicamente encouraçado, pois nele não há equilíbrio entre expansão e contração. O corpo fica refém de uma simpaticotonia crônica, um acionamento contínuo da parte de nosso sistema nervoso autônomo responsável pelas contrações. Portanto, quando uma pessoa sente apertos no seu corpo (sensação de angústia) pode-se afirmar que o organismo está excessivamente contraído.
O terapeuta pode sentir que o paciente está angustiado observando e sentindo os esforços e os encolhimentos que ele faz. Por exemplo, tensionando os ombros e o pescoço, ou apertando os masseteres. A descarga dessa tensão crônica pode se dar disfuncionalmente de diversas maneiras. Por exemplo, pelos sintomas físicos causados pela ansiedade, pela agitação do corpo e da fala. E também pelo suor frio, ou pelo excesso de uremia, numa tentativa de reduzir a pressão arterial e também eliminando o excesso de energia estagnada na couraça. W. Reich em seus experimentos com a energia descobriu que a água tem uma boa condutibilidade da energia orgônica. Quem já fez uma sauna e suou dentro dela vai notar que há um relaxamento causado pela eliminação da água no corpo, que expulsa algumas toxinas químicas, reduz a pressão arterial e também elimina parte da estase energética.
A ansiedade pode ser reduzida por meio de massagem e respirações profundas que privilegiem o esvaziamento completo do ar dos pulmões. Contudo isto não elimina em definitivo a ansiedade. Ela é continuamente produzida pelas contrações crônicas da couraça muscular, notavelmente no segmento do músculo do diafragma. |
Tudo que acontece no corpo, simultaneamente acontece na mente, ambos são sustentados pela mesma energia sexual, o orgônio (bioenergia). Portanto, a redução da ansiedade implica em o paciente conseguir fazer contato com o que realmente sente. Que emoções se escondem por baixo da ansiedade? Isso só poderá ser descoberto se for feito contato com o que realmente se sente. Em seguida é preciso sustentar o contato, continuar sentindo, para depois compreender com nossos pensamentos. Sentir é fundamental para a redução da ansiedade. Com a metodologia da terapia pós-reichiana, pânico e fobias, podem ser curados.
Sentir também é fundamental para o(a) terapeuta. Sem sentir seu paciente, não há que se falar em terapia pós-reichiana. O terapeuta se vale de seu próprio corpo, de seus sentidos e suas sensações de órgãos, como se fosse uma caixa de ressonância. Não é uma terapia baseada em interpretação de conteúdo discursivo. |
Por exemplo, para saber se um paciente dissocia sua explicação verbal do que realmente está sentindo no corpo, o terapeuta precisa sentir seu paciente por dentro. Ser impressionado, impregnado, pelos movimentos expressivos vivos dele. Uma dissociação é uma disparidade entre o que se fala e o que se expressa com o corpo. Se o paciente diz que está alegre, mas o terapeuta sente tristeza em seu olhar, sabe-se que ele está dissociando. Os corpos, além de se expressarem fisicamente, também emitem energia, possuem um campo energético ao qual podemos sentir, com as sensações de órgãos. Podemos sentir o campo como tenso ou tranquilo. Isso não é místico, a maioria de nós pode se recordar das vezes em que sentiu outra pessoa (ou a si mesma) “carregada”. O terapeuta usa seu corpo e sua mente como aparelho de investigação do paciente. A investigação é amorosa, pois o que ele emite entra e impressiona o terapeuta, ao passo que o terapeuta também causa isto nele. Isso é possível por meio da construção do vínculo terapêutico. Como o terapeuta afeta o paciente, é vital que seu próprio processo terapêutico esteja em dia, para não contaminar a relação terapêutica com sua ansiedade.
Numa dissociação o que a pessoa sente está desconectada da realidade. Como observamos no discurso de alguém que está em surto psicótico. Mas dissociar não é privilégio das psicoses, também está presente nas neuroses. Uma das pistas sensoriais que o terapeuta pode ter de alguém que está dissociando é observar seus olhos. |
A racionalização é uma defesa contra os sentimentos e sensações. Um paciente que está racionalizando não faz contato com o que sente. A pessoa que racionaliza faz um discurso ponderado, bem encadeado, bem lógico. Produz boas teses, porém desconectadas do seu corpo. Por vezes fala de modo pouco vibrante, não demonstra emoções ou tenta escondê-las ainda que o faça de modo involuntário. A descrição que faz da realidade é mecânica, conta uma história explicativa sobre si, baseado em teses. Pode-se observar que a pessoa que racionaliza tem o corpo rigidamente sob controle. Seus gestos não são fluidos. O paciente quando está racionalizando tenta dar à conversa um rumo puramente intelectual, como a que veríamos numa sala de aula comum, ou em uma conversa formal. Pode-se encontrar no discurso racionalizado a presença do narcisismo, por vezes com uma certa arrogância na fala. A pessoa pode produzir lógicas a partir do que pensa ser o “certo” e o “errado” e tenta justificar sua fala a partir destes conceitos presentes em suas ideias. É sentindo que o terapeuta percebe isso, porque se ele se ater apenas ao que é falado, e não ao como é dito, poderia se deixar levar pela conversa do paciente e perder a condução terapêutica. As histórias contadas por quem está racionalizando são um meio do paciente se defender. Ele tenta convocar o terapeuta para que perceba e acredite apenas no que fala. É uma defesa contra o sentir.
Quando um paciente neurótico fala de forma paranoica, está utilizando um tipo de pensamento delirante. Como podemos ler no livro O Éter, Deus e o Diabo “o pensamento se desprende da realidade objetiva, em um determinado ponto e desenvolve sua própria lógica interna de erros” (REICH, 2003). Ou seja, pensamentos paranoicos não são uma exclusividade dos psicóticos, também está presente nos neuróticos. Paranoia de ciúmes, paranoia de se sentir perseguido, são exemplos de discursos que não se sustentam pelo que de fato acontece com a pessoa, seja em tempo real ou narrando algo que viveu no passado. Quando a emoção está em desacordo com a realidade, estamos observando uma emoção congelada, da couraça, participando das ansiedades e pensamentos do paciente. Neste caso o paciente não consegue integrar o que sente com a realidade.
A couraça conta suas histórias de forma silenciosa, e o terapeuta pode aprender essas histórias sentindo o modo como ela se expressa. Cabe ao terapeuta discernir o que vem da couraça do que vem da espontaneidade viva de seu paciente. Não deve se deixar enredar pelas estórias contadas pela couraça de seu paciente, mas sim observar os modos como seu paciente funciona, enquanto ele se expressa. Apenas conhecendo profundamente o caráter de seu paciente e os modos como se defende de suas emoções, o terapeuta saberá reconhecer quando o movimento do paciente parte de um lugar em que consegue fazer contato consigo e com o outro, do que W. Reich chamou de cerne biológico.
Precisamos sentir para conhecer como funcionamos, sejamos nós terapeutas ou pacientes. Sentindo é que podemos aferir se nosso movimento está passando pela couraça crônica ou se está sendo genuinamente espontâneo. Sem abandonar-se ao sentir, o corpo não tem como efetuar a entrega à pulsação da vida, ou à outra pessoa no enlace sexo-afetivo. |
Sem sentir, não é possível sentir as dores dos outros. Sem sentir não há humanidade genuína, nem possibilidade de criação de vínculo entre paciente e terapeuta, ou de qualquer vínculo interpessoal. Sem sentirmos, não há vida social que respeite e proteja nossa capacidade de autorregulação e satisfação. Sem sentir, não há vida livre, apenas esforço para sobreviver. A clínica pós-reichiana nos convida, pacientes e terapeutas, a sentirmos plenamente a pulsação da vida e a buscarmos uma vida cada vez mais satisfatória.
Texto de Rafael Benini
Psicólogo e aluno em Formação da EFEN