A política, a forma como nos relacionamos com as pessoas, é uma das abordagens realizadas com o paciente na terapia pós-reichiana. A terapia procura flexibilizar o repertório de sentimentos e de ações do paciente no mundo, para que as trocas com a sociedade tenham a possibilidade de serem mais prazerosas e satisfatórias e menos conflituosas e angustiantes. Como afetamos nosso ambiente? E como eles nos alimenta de volta? |
Entrar em contato, fazendo uso da ferramenta do pensamento funcional (muito bem descrita no livro “Éter, Deus e o Diabo”). Compreender a forma de pensar funcional foi como receber uma autorização a ver por mim mesmo, sem crenças, sem intermediação. Sentir de forma direta.
Sem autorizações internas (crenças, preconceitos, teses, certezas) ou externas (palavras e autoridades dos especialistas, teólogos, políticos, educadores, instituições). Abandonar a segurança de uma autoridade externa, ou internalizada (como na obediência a crenças internalizadas). Ou seja, não pensar de forma apriorística sobre nada com que eu estiver entrando em contato. Estar aberto ao novo, porque as pessoas, as relações, os meios, nunca são os mesmos. O presente é fluxo e não estático.
O pensamento funcional vai além do conceito de pensamento transdisciplinar que afirma que não há separação entre as áreas de conhecimento, com troca entre elas. O raciocínio é um nível da realidade, seu nível lógico. O pensamento funcional engloba o transdisciplinar e inclui o funcionamento de tudo, sem separação. Integra os sentimentos e as sensações junto ao raciocínio. Tudo que existe são sistemas e subsistemas em movimento. Busca-se entrar em contato, por meio dos sentidos, com a realidade não verbal presente em toda natureza.
Ao longo da vida temos experiências sensoriais e intuitivas. Ao curso da minha, pude experimentar algumas sensações que muitas vezes acredita-se ser monopólio de religiões, seitas ou ordens esotéricas. Por exemplo: a percepção de fluxo energético no corpo (tais como calor, arrepio, formigamento), relaxamento e leveza, de maior ou menor percepção de vitalidade em mim. É muito gostoso estar em contato consigo e com a natureza.
Mas, concomitantemente a estas experiências, mergulhei por mais de duas décadas em algumas vias místico-transcendentes, onde fui contagiado com a metafísica. E por estas vias pude experimentar uma forte contradição. Enquanto tive experiências de expansão de consciência e alguns fenômenos perceptíveis sensorialmente que pude verificar com meu próprio corpo, também efetivei “plugues mentais” metafísicos limitadores e definidores da realidade, para além do que eu efetivamente experenciava. Isto afetou meu modo de viver.
Então, estas vias que participei, embora não sejam religiosas, compartilham com elas do mesmo imaginário transcendente. A realidade transcendente é eterna, imutável e perfeita. Neste modelo de mundo, a realidade natural é inferior, imperfeita. A busca espiritual transcendente envolve tentar sair do fluxo de mudanças, com intuito de se escapar à mortalidade, para se entrar na permanência estática onde não existiria sofrimento. Nesta permanência existiria o mundo ideal com seus conceitos que sempre seriam imutáveis e que seriam expressos de forma imperfeita no mundo: a felicidade, o amor, o bem, etc.
Esta realidade seria atingível por meio de meditações, práticas espirituais, e bons modos de se conduzir na vida social. Pois bem, nunca “alcancei” a transcendência e se não o consegui, segundo o modo de pensar destas vias, é por minha própria incapacidade (ou culpa) para tal. Esta concepção de vida, juntamente com as recomendações de um “mestre” de uma ordem esotérica a qual estive afiliado por mais de uma década, me levou a acreditar que existem emoções boas e emoções ruins. As boas seriam aquelas que nos aproximam de Deus. E as ruins seriam aquelas que nos levariam para longe dele e de sua ordem perfeita.
Com isto, passei a não querer mais demonstrar minhas emoções julgadas como “ruins”: medo, raiva, tristeza. E isso me causou um prejuízo enorme. Minha intuição, ao invés de se ampliar, se perdeu ou se tornou confusa. Minha razão passou a operar com pares de opostos: bom e mal, certo e errado. Muitas vezes dividi o mundo entre os “bons” e os “ruins”, entre “eleitos” e “não eleitos”, “iniciados” e “profanos”. Isso afetou toda minha forma de me relacionar com as pessoas. Procurei me aproximar de pessoas com mentalidade afinadas e cheguei mesmo a me afastar, ou reduzir o contato, por um tempo, com as que pensassem muito diferente de mim.
Também, novamente desta ordem esotérica, passei a acreditar que as emoções estão abaixo do Espírito divino, e que só se relacionariam com minha parte humana e mortal. Para contatar este Espírito eu precisaria “transcender” minhas emoções, ir para além delas e assim fazer um contato com as ideias vindas dele. Isto fez com que o contato com as minhas emoções se tornasse mais difícil e precário. Sentimentos de bem estar derivados de meditação, caridade, reuniões fraternas, exercícios “espirituais” realmente foram percebidos e acolhidos por mim. Mas minhas dificuldades surgiram a partir de eu buscar agir no mundo a partir do que eu não estava realmente experimentando e sentindo, com base num modo de comportamento preconizado como sendo bom e como chave para se transcender à realidade viva.
O misticismo é uma concepção de vida e uma atitude para como nos relacionamos com o amor, o trabalho e o conhecimento. No misticismo abandona-se as coisas tais como elas são e passa-se a viver em torno de como minha vida deveria ser. Em torno de julgamentos de certo e errado e não de movimentos em direção ao que me faz bem e me é agradável e de procurar me afastar do que sinto ser ruim para mim. Na vida, o amor acontece sempre com o envolvimento do seu corpo. Uma relação sexo-afetiva, envolve o abraço genital, o encontro e troca de qualidades de dois corpos que se entregam. No misticismo há o ideal do amor platônico e do sacrifício. O amor sexo-afetivo deixa de ter como cume um orgasmo satisfatório. O amor nas relações afetivas deixa de ser sentido como troca e sensações agradáveis e gostosas. O amor mistificado passa a ser entendido como sacrifício: quanto mais você sofrer, renunciar e se abdicar em prol do outro ou de um ideal, ainda que em prejuízo de si mesmo, maior será o amor (não necessariamente sentido, mas idealizado e, portanto, apenas pensado e julgado como tal por si e pelos outros).
Reich afirma na página 12 de seu livro “Psicologia de Massas do Fascismo”: “O fascismo é a expressão máxima do misticismo religioso” e na página 17 que a “teoria da raça é misticismo biológico”. Sim, neste sentido o misticismo pode sustentar posições sociais perigosas para a vida das pessoas e para as minorias. Ao longo da minha jornada li e ouvi afirmações que naturalizariam posições sociais “superiores” e “inferiores”. Esta foi a parte mais perigosa da minha caminhada. |
Naquela ordem esotérica, não eram aceitas pessoas homossexuais. Eu ter participado de tal fraternidade, ainda que não fôssemos abertamente contra o homossexualismo, ainda que fosse “apenas” em rejeitar na “Ordem” as pessoas por conta deste critério, sem mudar meu comportamento social com elas, hoje me causa espanto e tristeza. Como alguém seria incapaz de entrar em contato com as energias sutis do Cosmos apenas por causa de sua sexualidade? Este critério em si mesmo alimenta a homofobia. A vida salva a si mesma. A salvação não é privilégio de uns poucos e nem se obtém por se participar de alguma igreja ou seita. Nesta mesma “Ordem” entendia-se que as mulheres teriam uma energia principal circulando nelas que seria passiva à energia do homem. Por este pensamento místico, mulheres seriam naturalmente mais passivas que os homens. O quanto isto não pode ser usado para justificar o patriarcado e limitações de papéis sociais para as mulheres?
Estes três exemplos de pensamentos místicos demonstram o quanto o fascismo está diretamente relacionado ao misticismo. Ao se pensar que existem pessoas melhores, que mulheres devem ser submissas ao homem, e que homossexuais estariam excluídos do processo iniciático, o quão distante isto está do misticismo fascista? Tudo isto não está presente no próprio fascismo? A diferença nestes exemplos não seria de conteúdo, mas como estas ideias se relacionam com os afetos. Se adicionarmos a estes pensamentos a peste emocional, teremos o ódio em ação: contra mulheres, homossexuais e quaisquer pessoas misticamente entendidas como inferiores.
Havia diferenças importantes nas fraternidades das quais participei, a maioria era mais liberal nos costumes do que o modo de funcionar da narrada no texto. Estou ciente de que existem fraternidades espirituais e esotéricas que não reprimem a sexualidade, nem adotam visões de mundo desconectadas da realidade. A meditação pode ser uma boa ferramenta para entrar em contato consigo e com o mundo. Depende de como ela é usada. É importante frisar que não podemos julgar que toda organização que se autodenomine como sendo mística seria nociva à vida. O importante não é a definição, mas como a fraternidade funciona. Em prol da vida e da liberdade, ou de uma repressão sobre si e sobre o outro.
Espero que meu texto possa tocar a quem ler, para que se previna quanto a ideias que dividam a humanidade entre nós (os melhores) e eles (os piores). Observe-se para perceber quando seus pensamentos estão desconectados da realidade e ligados a uma ideia daquilo que você imagina que deveria ser o ideal.
A melhor profilaxia quanto à prevenção do misticismo é não reprimir a sexualidade das crianças. Não dar ordens autoritárias a elas, mas sim permitir que se autorregulem, permitindo que compreendam a realidade a partir daquilo que realmente sentem, e não o que dizem o que ela pode ou não sentir. Quanto ao amor, olhando para o passado da humanidade e para o presente, penso que nenhum amor de um deus transcendente salvará o mundo. |
Rafael Benini
Psicólogo e aluno da EFEN