É notória a preocupação de Wilhelm Reich que atravessou todas as suas obras, desde a técnica da Análise do Caráter, na qual analisou as estruturas e expressões defensivas do caráter, até seu O Éter, Deus e o Diabo, onde falou do pensamento funcional e energético, passando por obras menos “teóricas” como Crianças do Futuro, O Assassinato de Cristo ou Escuta Zé-Ninguém! |
Nesse sentido, a partir dos estudos de Reich compreendemos que tudo que está fora também está dentro, isto é, há um princípio de funcionamento comum na vida – e, nesse sentido, a ordem social e a vida individual são partes de um todo, de uma natureza concreta e seu processo integral real e histórico de funcionamento. No entanto, não estamos na Europa, não pensamos Reich na Europa, enquanto terapeutas, temos feito um esforço para pensar o BRASIL, e meus estudos em torno da pesquisa “Psicologia Política na Formação Social Brasileira [2]”, tem contribuído nessa direção, fazendo dialogar as contribuições do pensamento Reichiano, aliadas à outras do pensamento social crítico contra-colonial.
SILVIA IZQUIERDO (AP)
A partir desses estudos, entendemos que o racismo estrutural na formação social brasileira, e particularmente o ethos racista (MOURA, 2014) decorrente de processos histórico-concretos da organização societária no país, determinam o ser-precisamente-assim da brasilidade, com consequências em todos os níveis da ordem social. Desse modo, a ideia é pensar Reich em toda a particularidade do desenvolvimento capitalista no Brasil, considerando o peso das relações étnico-raciais em nossa história e a particularidade de uma psicologia política à brasileira.
Em entrevista publicada no site do Conselho Federal de Psicologia (CFP), intitulada “O racismo é sim promotor de sofrimento psíquico”, Valter da Mata (2015) analisa que o racismo afeta duas dimensões da saúde mental diretamente: a identidade e a autoestima. “Não possuindo referenciais identitários valorizados na nossa sociedade (heróis, pessoas bonitas, inteligentes) resta ao grupo subalterno se identificar com a sua “inferioridade natural” ou reivindicar para si um ideal de ego branco“. Assim, temos o que denomina consequências somáticas, para a população negra, a exemplo da depressão, do alcoolismo, da ansiedade, da autodepreciação, e da síndrome do pânico.
(Foto: Sérgio Lima / AFP)
Nos parece que há na perspectiva abordada a separação das partes do todo. Como se saúde mental fosse algo autônomo, e como se identidade e autoestima fossem peças desse quebra-cabeça, os quais, quando não correspondem a um modelo ideal representativo causam sofrimento nos sujeitos. Nesse sentido, o denominado “ego branco” parece ter vida própria, tornando-se uma referência que se autonomiza.
Se é certo que o racismo tem consequências e a explicação atribuída pela psicologia parece insuficiente para dar conta da expressão do fenômeno nos sujeitos histórico-concretos, como “a nova esfera funcional de pensamento, em contraste com a esfera mecanicista e mística da civilização patriarcal” (REICH, 2003, p. 7), proposta por Reich poderia nos ajudar a encontrar o cerne da questão?
Para Reich o fascismo não é um “partido político” ou uma “ideia política”, ou uma “característica nacional de alemães ou japoneses” assim também é o racismo, compreendido em sua forma concreta de funcionamento desde a forma particular como a sociedade patriarcal se desenvolveu no Brasil.
Há um debate recorrente sobre o fascismo, que o apresenta como uma ideologia que pode ser atribuída a um partido político ou a um país a partir de determinada circunstâncias políticas no curso da história. Reich, ao contrário, vai assinalar que:
“O fascismo não é mais do que a expressão politicamente organizada da estrutura do caráter do homem médio, uma estrutura que não é o apanágio de determinadas raças ou nações, ou de determinados partidos, mas que é geral e internacional. Neste sentido caracterial, o fascismo é a atitude emocional básica do homem oprimido da civilização autoritária da máquina, com sua maneira mística e mecanicista de encarar a vida (REICH, 2001, p. XXVII).”
Nos parece que no próprio amadurecimento teórico do autor, ele mesmo identificou em obras posteriores que qualquer coisa pretensamente universal, acaba por tornar estático-absoluto, ao passo que autonomiza um processo ou fenômeno que está em funcionamento vivo e dinâmico, tornando-o mecanicista.
Julgamos necessário apreender o sentido caracterial do fascismo em seu movimento dinâmico, histórico-concreto, o qual é expressão do movimento real do desenvolvimento da civilização industrial gravemente doente em terras tupiniquins. O objetivo da pesquisa em andamento é cotejar a hipótese do racismo como forma particular do movimento dinâmico da caracterialidade fascista no Brasil, diante da forma específica como se desenvolveu historicamente a civilização industrial, a família patriarcal e a chamada classe média nessas latitudes. Segundo Reich:
“A nossa psicologia política não poderá ser outra coisa que um estudo do “fator subjetivo da história”, da estrutura do caráter do homem numa determinada época e da estrutura ideológica da sociedade que ela forma. Esta psicologia não se opõe, como a psicologia reacionária e a economia psicologista, à sociologia de Marx, quando lhe sugere uma ‘visão psicológica’ dos fenômenos sociais; pelo contrário, ela reconhece o mérito dessa sociologia que a partir da existência infere uma consciência. (REICH, 2001, p. 15 )”
Nessa esteira, encontrar o ser-precisamente-assim do racismo como forma particular do movimento dinâmico da caracterialidade fascista no Brasil, em sua organicidade histórica e viva na sociedade brasileira, expressa em suas relações sociais e funcionais – no que se refere à caracterialidade dos indivíduos histórico-concretos –, requer, portanto, observar a particularidade do desenvolvimento da sociedade capitalista patriarcal no Brasil, dado que não podemos esquecer, “a estrutura do caráter é o processo sociológico congelado de uma determinada época” (REICH, 1989, p. 7).
Nesse percurso nos propomos a pensar a violência do Estado durante o Brasil colonial como método de repressão e domínio utilizado pelas classes dominantes locais e de construção das relações sociais no país. A repressão com uso explícito, deliberado e perverso da violência atuou para garantir o sistema econômico, político e social interno que atendia às demandas do Estado metropolitano. A escravização dos povos originários concomitantemente ao tráfico e escravização dos povos africanos manteve por séculos o saque e o envio das riquezas aqui produzidas para a metrópole e para os demais países com os quais ela mantinha relações. Esse processo precisa ser compreendido a partir do lugar dos povos escravizados e de suas experiências na conformação dessa sociedade (CARRARO e ROCHA, 2021).
Assim, diferentemente de pensarmos os processos de encouraçamento e a formação de uma ordem social patriarcal e autoritária apenas nos MOLDES EUROPEUS, que foi de onde partiu a análise de Reich, a pesquisa da Prof. Mirella Rocha propõe trazer essa análise para a nossa formação social brasileira e como se deu um regime patriarcal particular em uma sociedade estruturada sobre processos violentos de escravização, e as consequências sobre a vivência da sexualidade – que vai se traduzir nas mesmas formas patriarcais autoritárias e repressivas que observamos no desenvolvimento capitalista que ocorreu nos países centrais para as pessoas brancas; e em formas permissivas, perversamente violadoras, objetificadoras e profundamente violentas para com as pessoas negras.
Este é o convite para desdobrarmos novos estudos sobre a formação social, caracterial, sexual e política a partir dos escritos de Reich e de uma prática clínica reichiana e o tema muito próprio nosso, das relações étnico-raciais na formação social brasileira.
[1] Texto produzido a partir de original publicado no Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as – COPENE (ROCHA, 2020), contando com revisão e forma final por Vicente Carneiro, a quem agradeço.
[2] Pesquisa desenvolvida a partir do PET Conexões Povos de Terreiro e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com financiamento do FNDE/MEC/CNPq, sob minha coordenação. mirella.rocha@ufrj.br
[3] “Precisamos de união entre pessoas de bem”, diz Edsoul sobre luta contra o racismo | Edsoul | NSC Total
[4] “Não se pode pensar a democracia real no Brasil se o racismo não for um ponto central” | Atualidade | EL PAÍS Brasil (elpais.com)
[5] o fascismo no brasil (obviousmag.org)
Autora: Mirella Rocha é profa. Dra. da Escola de Serviço Social da UFRJ e Terapeuta licenciada pela EFEN.
Referências
CARRARO, Dilceane; ROCHA, Mirella. O Estado na formação social brasileira: violência como método de construção das relações sociais In: QUADRADO, Jaqueline Carvalho (Org). Políticas públicas, desigualdades sociais e marcadores sociais da diferença. [E-book] São Borja: UNIPAMPA, 2021, p. 13-35. Disponível em: https://repositorio.unipampa.edu.br/jspui/handle/riu/6056
CFP. Conselho Federal de Psicologia. Valter da Mata - Entrevista CFP “O racismo é sim promotor de sofrimento psíquico. 2015. Disponível em: https://site.cfp.org.br/o-racismo-e-sim-promotor-de-sofrimento-psiquico/?wpmp_tp=1
MOURA, Clovis. Rebeliões de Senzala. São Paulo: Anita Garibaldi, 2014.
REICH, Wilhelm. Análise do caráter. São Paulo: Martins Fontes, 1989
REICH, Wilhelm. Eter, Deus e o Diabo e a superposição cósmica. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ROCHA, Mirella. Psicologia política do racismo no Brasil: relações raciais em debate. In: SILVA, Paulo Vinicius Baptista da [et al]. Negras escrevivências, interseccionalidades e engenhosidades : movimentos negros, pensamento, história e resistências [Livro 3] /XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as. Curitiba : Universidade Federal do Paraná, 2020. Disponível em: https://drive.google.com/drive/u/0/folders/15J9UGT_A3E40amsQopPJIKPicTzcd76Q